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Dramaticidade semelhante está presente no antológico Vozes d'África, quando o poeta personifica o continente negro e deixa-o expressar sua dor, numa figura de linguagem chamada prosopopéia.
Esta composição poética começa com a mais famosa das apóstrofes da literatura brasileira e segue traduzindo o sofrimento e a humilhação dos povos africanos. Observem-se os excertos abaixo:
Deus! ó Deus! onde estás que não respondes?
Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes
Embuçado nos céus?
Há dois mil anos te mandei meu grito,
Que embalde, desde então, corre o infinito...
Onde estás, Senhor Deus? (...)
Não basta inda de dor, ó Deus terrível?
É pois teu peito eterno, inexaurível*
De vingança e rancor?
E que é que eu fiz, Senhor? que torvo* crime
Eu cometi jamais que assim me oprime
Teu gládio* vingador?!
* Embalde:
* Inexaurível: inesgotável
* Torvo: pavoroso
* Gládio:
OUTROS POEMAS
Curioso é o poema narrativo A cachoeira de Paulo Afonso, composto por uma série de quadros, onde se fundem o lírico e o social. É a história de amor entre dois escravos, Lucas e Maria, que termina com o suicídio de ambos na cachoeira. Uma história melodramática, mas pontilhada de excepcionais descrições da natureza brasileira, como esse Crepúsculo sertanejo:
A tarde morria. Nas águas barrentas
As sombras das margens deitavam-se longas!
Na esguia atalaia* das árvores secas
Ouvia-se um triste chorar de arapongas.
A tarde morria! Dos ramos, das lascas,
Das pedras, do líquen, das heras, dos cardos*
As trevas rasteiras com o ventre por terra
Saíam, quais negros, cruéis leopardos.
A tarde morria! Mais funda nas águas
Lavava-se a galha do escuro ingazeiro...
Ao fresco arrepio dos ventos cortantes
Em músico estalo rangia o coqueiro. (...)
Somente por vezes, dos jungles* das bordas,
Dos golfos enormes daquela paragem,
Erguia a cabeça, surpreso, inquieto,
Coberto de limos - um touro selvagem.
* Cardo: planta espinhosa
* Jungle: mata espinhosa
Um Verdadeiro Defensor dos Escravos?
Nas últimas décadas, tornou-se moda acusar Castro Alves de ter apenas piedade do escravo e de não vê-lo integrado no processo produtivo. Sendo assim, seu condoreirismo estaria impregnado dos preconceitos da burguesia branca contra o negro. Tal visão é ridícula. Basta atentarmos para poemas como Saudação a Palmares e Bandido Negro. No último, há inclusive um refrão verdadeiramente revolucionário para uma época em que o escravo que levantasse o braço contra o seu senhor era punido com ferocidade:
Cai, orvalho de sangue do escravo,
Cai, orvalho, na face do algoz.
Cresce, cresce, seara vermelha,
Cresce, cresce, vingança feroz.
POESIA LÍRICA: O AMOR SENSUAL
O lirismo amoroso de Castro Alves distingue-se das concepções dominantes na poesia romântica brasileira. Ao contrário de Gonçalves Dias, não considera o amor como impossível de ser realizado. Tampouco encobre a sensualidade, como Casimiro de Abreu. Muito menos apresenta a relação física como perversão fantasiosa, a exemplo de Álvares de Azevedo. Em Castro Alves, as ligações sentimentais são apresentadas de uma maneira viril, sensual e calorosa.
Mário de Andrade observou que tanto o homem quanto o artista alcançam a plena realização sexual. Disso resulta uma lírica original por explorar o erotismo sem subterfúgios e sem culpa.
Ninguém como Castro Alves sabe cantar as excelências das uniões corpóreas, ninguém como ele sabe falar de homens e mulheres reais. Até mesmo sua linguagem - freqüentemente retórica ao tratar de temas condoreiros - torna-se simples e coloquial na poesia amorosa.
A partir de um esplêndido domínio da metáfora, o poeta cria imagens de rara beleza e intenso sentido de plasticidade, conforme se pode observar em versos como: "Sob a chuva noturna dos cabelos..." Ou: "Minha Maria é morena / Como as tardes de verão." Ou ainda, referindo-se a uma de suas amadas: "Lírio do vale oriental, brilhante! / Estrela vésper do pastor errante!" Encantador e de singelo erotismo é o poema Adormecida, onde galhos e ramos assediam amorosamente a jovem que dorme numa rede:
Uma noite, eu me lembro... Ela dormia
Numa rede encostada molemente...
Quase aberto o roupão...solto o cabelo
E o pé descalço do tapete rente.(...)
De um jasmineiro os galhos encurvados,
Indiscretos entravam pela sala,
E de leve oscilando ao tom das auras*,
Iam na face trêmulos - beijá-la
Era um quadro celeste!... A cada afago
Mesmo em sonhos a moça estremecia...
Quando ela serenava... a flor beijava-a ...
Quando ela ia beijar-lhe... a flor fugia... (...)
* Aura: vento brando.
Em Os anjos da meia-noite, o poeta inventa a imagem quase surrealista de um seio solto a flutuar:
Como o gênio da noite que desta desata
O véu de rendas sobre a espádua nua,
Ela solta os cabelos...Bate a lua
Nas alvas dobras de um lençol de prata...
O seio virginal que a mão recata,
Embalde o prende a mão...cresce, flutua... (...)
POESIA LÍRICA: O AMOR SENSUAL
Castro Alves é, pois, um cantor de mulheres. Em seus ardentes versos, descreve-as, confessa-lhes a paixão e, não raro, as possui em clima de delírio. Mas falta alguma coisa, alguma inquietação por aquilo que transcende ao sexo. Ele não ultrapassa a superfície dos corpos e nada revela a respeito das verdades mais profundas da relação amorosa. Simplesmente registra os encontros e os desencontros físicos dos amantes, com seu inegável estilo sedutor.
No poema Boa-noite, por exemplo, a beleza de algumas metáforas não impede que se perceba a superficial ligação que o poeta estabelece entre a amada e várias heroínas da literatura ocidental, numa espécie de ronde de femmes (rodízio de mulheres). O resultado é atraente, mas desprovido de profundidade:
Boa-noite, Maria - Eu vou-me embora.
A lua nas janelas bate em cheio.
Boa-noite, Maria! É tarde... é tarde...
Não me apertes assim contra teu seio.
Boa noite!... E tu dizes - Boa noite.
Mas não digas assim por entre beijos...
Mas não me digas descobrindo o peito,
Mar de amor onde vagam meus desejos.(...)
É noite ainda! Brilha na cambraia
- Desmanchando o roupão, a espádua nua -
O globo do teu peito entre os arminhos*
Como entre as névoas se balouça a lua...
É noite, pois! Durmamos, Julieta!
Recende a alcova ao trescalar* das flores.
Fechemos sobre nós estas cortinas...
São as asas dos arcanjos dos amores.
A frouxa luz da alabastrina* lâmpada
Lambe voluptuosa os teus contornos
Oh! Deixa-me aquecer teus pés divinos
Ao doido afago de meus lábios mornos.
Mulher do meu amor! Quando aos meus beijos
Treme tua alma, como a lira ao vento,
Das teclas de teu seio que harmonias,
Que escalas de suspiros, bebo atento!
Ai! Canta a cavatina* do delírio,
Ri, suspira, soluça, anseia e chora...
Marion! Marion!...É noite ainda.
Que importa os raios de uma nova aurora?!...
Como um negro e sombrio firmamento,
Sobre mim desenrola teu cabelo...
E deixa-me dormir balbuciando:
- Boa-noite! - formosa Consuelo!...
* Arminhos: peles.
* Trescalar: exalar.
* Alabastrina: clara, alva.
* Cavatina: pequena ária, cantiga.
O POETA E A MORTE
Programa da peça Gonzaga, montada por Eugênia Câmara, a amante preferida de Castro Alves Antes de sua doença, Castro Alves já experimentara o velho tema romântico da morte na juventude e o triste lamento que esta intuição do fim nele despertava.
O abismo entre os seus sonhos e a sombria realidade que impede a realização dos mesmos aparece em Mocidade e Morte, um de seus poemas fundamentais e, além de tudo, profético, conforme se pode ver nas primeiras estrofes:
Oh! Eu quero viver, beber perfumes
Na flor silvestre, que embalsama os ares;
Ver minha alma adejar* pelo infinito,
Qual branca vela n'amplidão dos mares.
No seio da mulher há tanto aroma...
Nos seus beijos de fogo há tanta vida...
- Árabe errante, vou dormir à tarde
À sombra fresca da palmeira erguida.
Mas uma voz responde-me sombria:
Terás o sono sob a lájea* fria.
Adejar: esvoaçar
Lájea: pedra do túmulo
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