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O poeta pobre, de Carl Spitzweg, é um desses raros momentos de ironia da pintura romântica e pode ser aproximado do humor prosaico de Álvares de Azevedo.
Um dos traços mais surpreendentes de Álvares de Azevedo é a ironia, resultante da descoberta do risível nas coisas prosaicas. Sem qualquer exacerbação sentimental, o poeta olha para tudo aquilo que o cerca e penetra humoristicamente no cotidiano.
Nenhum romântico antes ou depois dele conseguiu efeitos tão engraçados e inesperados. No mais das vezes, a ironia tem rara fineza. Em Spleen e charutos, obra composta por seis poemas, o humor prima pela sutileza, como nesta estrofe de Solidão:
Ó lua, ó lua bela dos amores,
Se tu és moça e tens um peito amigo,
Não me deixes assim dormir solteiro,
À meia-noite vem cear comigo.
Em Macário, Álvares de Azevedo intentou criar uma obra dramática em prosa. São cinco cenas de qualidade variável e pouco propícias à encenação. Na peça, um jovem, Macário, viajando rumo a cidade de São Paulo, onde vai estudar, pára numa estalagem no meio do caminho e faz amizade com um desconhecido mais velho, que é nada menos que o próprio Satã. Ambos iniciam então uma série de diálogos nos quais refletem cinicamente (em especial o diabo) sobre o sentido da vida, da morte, do amor e do sexo.
Na segunda cena, quando abandonam a estalagem e marcham para São Paulo, ocorre o melhor momento da peça, pois Satã faz análises hilariantes da realidade paulistana. Observe-se este diálogo entre o estudante e o demônio:
Macário:Por acaso há mulheres ali? (Em São Paulo)
Satã: Mulheres, padres, soldados e estudantes. (...) Para falar mais claro as mulheres são lascivas, os padres dissolutos, os soldados ébrios, os estudantes vadios. Isso salvo honrosas exceções, por exemplo, de amanhã em diante tu.
Macário: Esta cidade deveria ter o teu nome.
Satã: Tem o de um santo: é quase o mesmo. Não é o hábito que faz o monge. Demais essa terra é devassa como uma cidade, insípida como uma vila e pobre como uma aldeia. (...) Até as calçadas...
Macário: Que têm?
Satã: São intransitáveis. Parecem encastoadas* as tais pedras. As calçadas do inferno são mil vezes melhores. Mas o pior da história é que as beatas e os cônegos cada vez que saem, a cada topada, blasfemam tanto com o rosário na mão que já estou enjoado.
* Encastoadas: embutidas.
Na terceira cena, na casa de Satã, já na cidade, a temática concentra-se na questão do amor, visto como ilusão e sentimento ligado à morte. Na cena seguinte, Macário acorda de novo na pensão, como quem acordasse de um longo sonho, porém marcas chamuscadas no assoalho sugerem a passagem real do diabo.
A segunda parte da peça é assinalada pela presença de um personagem angelical (a antítese de Satã) chamado Penseroso. O artificialismo dos diálogos e a desarticulação das cenas tornam essa parte muito inferior à primeira. Quase no final, o puro Penseroso morre e Macário volta a se ligar com Satã, que então conduz o rapaz a uma orgia. Não para participar da mesma e sim para observá-la. E o que o demônio descortina para Macário parece ser o início de Noite na taverna:
Macário: Onde me levas?
Satan: A uma orgia. Vais ler uma página da vida; cheia de sangue e vinho - que importa? (...) Paremos aqui. Espia nessa janela.
Macário: Eu vejo-os. É uma sala fumacenta. À roda da mesa estão sentados cinco homens ébrios. Os mais revolvem-se no chão. Dormem ali mulheres desgrenhadas... umas lívidas, outras vermelhas... Que noite!
Satã: Que vida! Não é assim? Pois bem, escuta, Macário. Há homens para quem essa vida é mais suave que a outra. O vinho é como o ópio, é o Letes* do esquecimento... A embriaguez é como a morte...
Macário: Cala-te. Ouçamos.
* Letes: rio do Inferno mitológico.
NOITE NA TAVERNA (CONTOS)
Os duelos também ocorriam com freqüência entre os românticos, como se vê nesta ilustração da época. Se fôssemos cobrar verossimilhança dos contos que compõem o livro Noite na taverna, certamente riríamos desses sete rapazes que bebem, fumam, gritam, e - enquanto a fumaça se mistura com os eflúvios da cerveja e do conhaque - narram histórias de suas vidas orgíacas e criminosas.
Há algo de falsidade (e mesmo de bobagem pueril) nas cenas de necrofilia, incesto, canibalismo, assassinato e violação de todos os códigos morais que eles vão contando, falsamente horrorizados com o seu próprio desregramento. No entanto, apesar de sua total improbabilidade, esses relatos cínicos ainda hoje exercem uma sedução nos leitores, especialmente os mais jovens, mostrando que não se deve cobrar dos contos realismo e sim aquilo que eles representam simbolicamente.
Tendências góticas?
A partir do final do século XVIII e durante todo o Romantismo se desenvolveu um tipo de narrativa que ficou conhecida como gótico (2). Walnice Nogueira Galvão delimitou-o assim:
O gótico invoca as potências das trevas e exerce o ocultismo, a feitiçaria, a missa negra, a necrofilia, o culto ao demônio. Num clima onírico sepulcral predominam o informe, o inquietante. Compõem o cenário o castelo mal-assombrado, o cemitério, as ruínas, a bruma, entre as imagens dos mundos ínferos, tais como a masmorra, o porão, o túmulo. Pouco se disfarçam a sedução da morte e do aniquilamento. A prosa tempestuosa mimetiza as pulsões e projeções do inconsciente, às voltas com a atração pelo sacrilégio e pela profanação.
Ora, nos relatos curtos de Álvares de Azevedo predominam a concepção noturna da existência, a atração pela morte, o amoralismo com que se trai e se mata, além de compulsões incestuosas e necrófilas. Ou seja, elementos do gótico. O resultado é a criação de um mundo de sombras, onde indivíduos - torturados por impulsos proibidos - praticam ações que revelam o lado sujo e perverso de suas almas.
Talvez Álvares de Azevedo quisesse indagar, como disse Antonio Candido - através de suas histórias macabras, perversas e até mesmo risíveis - sobre os limites da crueldade e das possibilidades diabólicas do ser humano. Tudo isso o aproxima do gótico e dá certa consistência aos contos que assim ultrapassam a dimensão da falsidade melodramática* e transformam-se em opressivo pesadelo. Como exemplo, podemos lembrar um desses relatos.
* Melodramática: que apresenta exagero sentimental e gosto pelo patético.
(2) O nome gótico veio do primeiro romance desta tendência: O castelo de Otranto, de Horace Walpole, cujo enredo (cheio de mistério e terror) se desenvolve em um velho castelo gótico. Entre os autores que seguiram esta linha encontramos Mary Shelley, com Frankenstein e Bram Stoker, com Drácula. Também há fortes traços góticos nas obras de Edgar Allan Poe e de Lord Byron.
O Relato de Johann
A história de um dos moços, Johann, é um exemplo deste delírio noturno de Álvares de Azevedo. Em uma disputa de bilhar, o protagonista sente-se ofendido por outro jovem. Insultam-se e acabam duelando. Johann mata o estranho no confronto. Depois, rouba-lhe um anel e ao revistar o bolso do desconhecido encontra dois bilhetes: um para sua mãe e outro para a sua amada:
"A uma hora da noite na rua de ...n. 60, acharás a porta aberta. Tua G."
Não tinha outra assinatura. Eu não soube o que pensar. Tive uma idéia: era uma infâmia.
Fui à entrevista. Era no escuro. Tinha no dedo o anel que trouxera do morto. Senti uma mãozinha acetinada tomar-me pela mão, subi. A porta fechou-se.
Foi uma noite deliciosa. A amante era virgem. (...)
Quando eu ia sair, topei um vulto à porta.
- Boa noite, cavalheiro...eu vos esperava há muito.
Essa voz pareceu-me conhecida, porém eu tinha a cabeça desvairada...
Não respondi: o caso era singular. Continuei a descer, o vulto acompanhou-me. Quando chegamos à porta, vi luzir a folha de uma faca. Fiz um movimento e a lâmina resvalou-me no ombro. A luta fez-se terrível na escuridão. Eram dois homens que não se conheciam, que não pensavam talvez terem-se visto um dia à luz e que não haviam mais de ver-se porventura ambos vivos.
O punhal escapou-lhe das mãos, perdeu-se no escuro; subjuguei-o. Era um quadro infernal, um homem na escuridão abafando a boca do outro com a mão, sufocando-lhe a garganta com o joelho, e a outra mão a tatear na sombra procurando um ferro.
Nessa ocasião senti uma dor horrível: frio e dor me correram pela mão. O homem morrera sufocado e na agonia me enterrara os dentes pela carne. Foi a custo que desprendi a mão sangrenta da boca do cadáver. Ergui-me. (...)
Eu não podia crer: era um sonho fantástico toda aquela noite. Arrastei o cadáver pelos ombros... levei-o pela laje da calçada até o lampião da rua, levantei-lhe os cabelos ensangüentados do rosto... Um espasmo de medo contraiu horrivelmente a fase do narrador... Tomou o copo, foi beber... os dentes lhe batiam como de frio... o copo estalou-lhe nos lábios.
Aquele homem - sabeis-lo? - era do sangue do meu sangue, era filho das entranhas de minha mãe, como eu... era meu irmão! Uma idéia passou entre meus olhos como um anátema*. Subi ansioso ao sobrado. Entrei. A moça desmaiara de susto ouvindo a luta. Tinha a face fria como o mármore. Os seios nus e virgens estvam parados e gélidos como os de uma estátua (...)
Abri a janela, levei-a até aí...
Na verdade que sou um maldito! Olá, Archibald, dá-me um outro copo, enche-o de conhaque, enche-o até a borda! Vêde!... sinto frio, muito frio... tremo de calafrios e o suor me corre nas faces!(...)
- Que tens, Johann? Tiritas como um velho centenário.
- O que tenho? o que tenho? não vedes pois? Era minha irmã!
* Anátema: excomunhão, maldição.
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