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Os romances de temática indianista são três: O guarani (que Alencar preferia classificar como romance histórico), Iracema e Ubirajara. Todos apresentam um mesmo substrato estético e ideológico:
• Forte influência de relatos de Chateaubriand (Atala) e, em especial, de Fenimore Cooper (O último dos moicanos), embora Alencar tivesse consciência de que suas obras eram diferentes, conforme ele próprio afirmou:
Cooper considera o indígena do ponto de vista social, e na descrição dos seus costumes foi realista; apresentou-o sob o aspecto vulgar.
N´O Guarani é um ideal que o escritor intenta poetizar, despindo-o da crosta grosseira de que o envolveram os cronistas, e arrancando-o ao ridículo que sobre ele projetam os restos embrutecidos da quase extinta raça.
• A ação narrativa transcorre no passado remoto: O guarani e Iracema, no século XVII, e Ubirajara no período anterior ao descobrimento.
• A apresentação de heróis inteiriços e modelares. Se o romancista chegou de fato a estudar certas particularidades da cultura indígena, a exemplo da língua, dos valores religiosos e de alguns costumes, os personagens destas obras, em sua psicologia e em suas ações, são verdadeiros cavaleiros medievais, perdidos em bravias florestas, com um destino épico a cumprir.
• Acima de tudo, os índios são os heróis da nascente nacionalidade pós-colonial. Através desses guerreiros audaciosos e sem mácula (Peri, Jaguarê, Poti) e dessa mulher disposta a qualquer sacrifício (Iracema), os leitores do século XIX podiamm se orgulhar de suas supostas origens americanas e de sua ancestral nobreza.
• A poetização da vida aborígene, em contraponto - na sagaz observação de Nelson Werneck Sodré - com o silêncio absoluto sobre o papel do negro na formação social brasileira. Da mesma forma que a Independência não incluiu a abolição da escravatura em seu processo, os artistas da primeira geração romântica a ignoraram o problema dos negros. Assim, a temática indianista desempenhou o papel de compensação às misérias do presente histórico desses escritores.
• Por outro lado e paradoxalmente - como mostrou Alfredo Bosi - não foi o índio rebelde o celebrado por Alencar mas sim o índio que "entrou em íntima comunhão com o colonizador". Esta conciliação - diz o crítico - "violava abertamente a história da ocupação portuguesa", feita, como todos sabemos, de violência e destruição dos primitivos habitantes. Por isso, a exaltação dos índios ocorre somente quando os mesmos perdem a sua identidade e os seus valores, integrando-se (sempre na condição de súditos) à cultura dos conquistadores brancos. No caso de Iracema, soma-se ainda o viés patriarcal da época no elogio do comportamento da indígena feito de submissão, conformismo e renúncia.
• Tanto O guarani quanto Iracema podem ser designados como romances fundadores, ou seja, obras ficcionais que representam metaforicamente o início de um mundo e / ou de uma raça. No primeiro esta intenção é mais ou menos velada, embora a hipotética sobrevivência do casal Peri-Ceci, no final do romance, expresse (como mito) a fusão étnica que alicerçaria o novo país. Já em Iracema (anagrama de América) esta junção simbólica entre conquistadores e conquistados é explícita. Desta forma, Moacir, o filho da índia com o português Martim Soares expressa, simbolicamente, o início da raça cearense.
• No seu conjunto, os romances de temática indígena de José de Alencar apresentam méritos inegáveis. Iracema resiste à passagem do tempo pela espetacular força de seu estilo poético. Ubirajara - o único relato em que não ocorre o encontro do branco com o índio - apresenta uma trama envolvente, repleta de aventuras e de observações curiosas sobre os costumes nativos. Mesmo O guarani - em que pese sua falsidade social e psicológica - tem um enredo trepidante que deixa o leitor quase sem fôlego.
O GUARANI
Resumo
No início do século XVII, um dos fundadores do Rio de Janeiro, o fidalgo português D. Antônio de Mariz, em protesto contra a dominação espanhola (1580-1640), estabelece-se em plena floresta, construindo um verdadeiro solar medieval junto a um rochedo inexpugnável. Vive com sua mulher, o filho, D. Diogo, a filha, Cecília e uma mestiça, Isabel, apresentada como sobrinha, mas que na realidade é sua filha natural. Junto à casa dos Mariz, vive um bando de mais ou menos quarenta aventureiros. Estes homens entram no sertão, fazendo o contrabando de ouro e pedras preciosas e deixando um percentual para D. Antônio.
Logo em seguida à chegada da nobre família portuguesa, um jovem e hercúleo cacique, Peri, salva Cecília de enorme pedra prestes a desabar sobre ela. Ao receber o agradecimento dos brancos pelo gesto, (exceto da mulher de D. Antônio, que abomina índios), Peri abandona sua tribo e passa a viver junto a eles, numa pequena choupana. Desta maneira, o indígena confirma uma visão que tivera com Nossa Senhora, a qual lhe ordenara que a servisse. E Cecília (a quem Peri chama de Ceci) tinha as mesmas feições da Virgem Maria. Era a ela, portanto, que o índio devia obediência e proteção.
Em princípio, Ceci manifesta um pouco de medo e repugnância pelo guarani. Este, entre outras façanhas, captura uma onça viva para mostrá-la a sua Iara (senhora). Também desce ao fundo de um penhasco, tomado por répteis e cascavéis, para apanhar um estojo com uma jóia da heroína. Apoiada pelo pai, que percebera a nobreza do índio ("É um cavalheiro europeu no corpo de um selvagem"), a jovem começa a simpatizar com seu estranho protetor.
Entre os aventureiros que vivem sob a égide dos Mariz, dois merecem destaque. Álvaro de Sá, rapaz de impulsos nobres e gestos superiores e que ama respeitosamente Ceci, embora, por seu turno, seja amado por Isabel. E o antigo frade carmelita, Angelo di Lucca - hoje Loredano - que abandonara o hábito depois de se apossar de um mapa de riquíssimas minas de prata, pertencente a um moribundo. Homem cruel e decidido, quer, antes de alcançar as hipotéticas minas, possuir Ceci, pela qual professa um desejo animalesco.
Simultaneamente, por um terrível equívoco (que aliás não lhe causa nenhum trauma), D. Diogo, o filho de D. Antônio, mata a filha do cacique dos aimorés, pensando se tratar de um animal. Os aimorés ("povo sem pátria e sem religião") querem vingança, exigindo em troca a vida da doce Ceci. Desejada impuramente por Loredano e perseguida pelos ferozes aimorés, quem poderia salvá-la de tantas adversidades?
Peri revela então a extensão de sua fidelidade aos portugueses. À medida em que centenas de aimorés iniciam o cerco final ao casarão, o herói - desobedecendo a sua "senhora" - parte para o acampamento dos inimigos e após derrubar vários deles, é preso e levado para o ritual antropofágico. Na hora da cerimônia, ingere poderosa dose de curare, um veneno terrível. Assim, quando os selvagens o devorassem, morreriam todos. Desta forma, Peri propõe o genocídio dos índios para que os brancos continuassem a viver livremente.
No entanto, quando o veneno já corrói as entranhas do bravo guerreiro, Álvaro de Sá irrompe de surpresa no acampamento, com alguns amigos, e o resgata. Peri volta para Ceci mais morto do que vivo, mas a heroína do romance (já se sentido afetivamente ligada ao índio) exige que ele tente se salvar. Cambaleante, Peri vaga pela floresta até encontrar o antídoto para o curare.
Quanto ao pérfido ex-padre, Loredano, acaba sendo desmascarado pelo herói, do mesmo modo que os seus principais asseclas. No final da narrativa, por causa de seus crimes e de sua monstruosidade moral, arderá em uma fogueira.
O cerco dos aimorés torna-se cada vez mais terrível. Álvaro morre ao buscar víveres na floresta, confessando antes à Isabel que lhe retribuía a paixão. Peri consegue recuperar o corpo do rapaz. Desesperada, Isabel pede que o índio o deposite em seu quarto. Depois, fecha todas as frestas do quarto e asfixia-se com a fumaça de resinas aromáticas, morrendo por amor, na cena mais bela do romance.
Sem alternativa de resistência, D. Antônio chama o índio e diz que, se este se tornasse cristão, lhe confiaria a filha para que tentasse levá-la à civilização. O herói responde: "Peri quer ser cristão!", e ajoelha-se diante do fidalgo que o batiza.
Enquanto as flechas incendiárias dos aimorés transformam a casa-forte num inferno, Peri pula o precipício - que cercava o casarão - com o auxílio de um galho de árvore, levando Ceci adormecida por uma bebida soporífera. Rapidamente alcança o rio Paquequer onde escondera uma canoa. Ouve-se uma grande explosão: D. Antônio colocara fogo no paiol e todos, os remanescentes brancos e centenas de aimorés desaparecem, numa espécie de apocalipse.
Ao acordar, Ceci chora muito a morte dos parentes e diz querer o índio para sempre a seu lado, na cidade. Peri rejeita a idéia de morar na civilização, porém a jovem não pode mais viver sem ele e, aproveitando-se de uma parada para descanso, corta as amarras da canoa.
Estão agora sozinhos, e como Adão e Eva, no começo do mundo, prontos para o amor. Eis quando uma grande enxurrada os surpreende (Alencar está atento aos preconceitos de seus leitores). O casal refugia-se em cima de uma palmeira, mas as águas continuam subindo. Em um último gesto heróico, Peri arranca a palmeira (incluindo raízes e tudo), transformando-a em canoa. O índio e a jovem branca são arrastados, então, pela correnteza. Em direção ao quê? Da morte? Do início da felicidade conjugal? Da simbólica construção de um novo mundo nos trópicos? O que acontece após o grande dilúvio? O leitor que decida.
Observe-se a antológica cena final do romance:
Então passou-se sobre esse vasto deserto d'água e céu uma cena estupenda, heróica, sobre-humana; um espetáculo grandioso, uma sublime loucura.
Peri alucinado suspendeu-se aos cipós que se entrelaçavam pelos ramos das árvores já cobertas d'água, e com esforço desesperado, cingindo o tronco da palmeira nos seus braços hirtos, abalou-o até as raízes.
Três vezes os seus músculos de aço, estorcendo-se, inclinaram a haste robusta; e três vezes o seu corpo vergou, cedendo à retração violenta da árvore, que voltara ao lugar que a natureza lhe havia marcado.
Luta terrível, espantosa, louca, desvairada; luta da vida contra a matéria; luta do homem contra a terra; luta da força contra a imobilidade.
Houve um momento de repouso em que o homem, concentrando todo o seu poder, estorceu distensão horrível.
Ambos, árvore e homem, embalançaram-se no seio das águas: a haste oscilou; as raízes desprenderam-se da terra já minada profundamente pela torrente.
A cúpula da palmeira, embalançando-se graciosamente, resvalou pela flor d'água como um ninho de garças ou alguma ilha flutuante, formada pelas vegetações aquáticas.
Peri estava de novo sentado junto de sua senhora quase inanimada; e, tomando-a nos braços, disse-lhe com um acento de ventura suprema:
- Tu viverás!...
Cecília abriu os olhos e, vendo seu amigo junto dela, ouvindo ainda suas palavras, sentiu o enlevo que deve ser o gozo da vida eterna.
-- Sim?...murmurou ela; viveremos!...lá no céu, no seio de Deus, junto daqueles que amamos! (...) Sobre aquele azul que tu vês, continuou ela, Deus mora no seu trono, rodeado dos que o adoram. Nós iremos lá, Peri! Tu viverás com tua irmã, sempre!...
Ela embebeu os olhos nos olhos de seu amigo, e lânguida reclinou a loura fronte.
O hálito ardente de Peri bafejou-lhe a face.
Fez-se no semblante da virgem um ninho de castos rubores e lânguidos sorrisos: os lábios abriram como as asas purpúreas de um beijo soltando o vôo.
A palmeira arrastada pela torrente impetuosa fugia...
E sumiu-se no horizonte...
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