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ROMANCES URBANOS
Numa Corte em que a imitação de costumes europeus convivia com a mediocridade da vida cotidiana, Alencar percebeu a existência de uma tensão: "a luta entre o espírito local (rasteiro, provinciano, patriarcal) e a invasão da cultura estrangeira (modismos românticos, paixões extremadas, etc.) ", como bem observa Roberto Schwarz.
O Rio de Janeiro - na metade do século XIX - era uma capital limitada e pouco cosmopolita e, portanto, insuficiente para um romancista seduzido pela idéia de grandeza. O autor cearense viu-se, pois, obrigado a inventar histórias complicadas, conversões mirabolantes, renúncias sublimes, amores violentos, etc., para sobrepô-los à pobreza humana e intelectual da sociedade brasileira de então.
Alencar tenta retratar este conflito entre a vulgaridade nativa e o sublime universo romântico. Contudo, suas narrativas acabam não se definindo entre a estrutura do folhetim e a percepção pré-realista do universo urbano brasileiro. São tão contraditórias quanto a realidade que procuram refletir.
Assim, em muitas de suas ficções, o aspecto folhetinesco supera completamente o registro da existência comum, do que resulta o aspecto quase inverossímil de personagens e acontecimentos. No entanto, duas narrativas permaneceram como modelares e ainda hoje merecem ser lidas, seja por sua relativa complexidade psicológica, seja pela novidade de incorporarem a questão econômica aos relacionamentos afetivos.
Nestes relatos, Alencar - além de traçar alguns de seus melhores "perfis femininos"(1) - relaciona o drama dos indivíduos com o organismo social. Em Lucíola a impossibilidade de união entre dois grupos sociais distintos, o popular e o senhorial. Em Senhora o casamento por interesse, um dos poucos instrumentos de ascensão na sociedade brasileira da época.
LUCÍOLA
Paulo, jovem bacharel pernambucano, escreve cartas à senhora G. M., para narrar-lhe a história de seu relacionamento com uma cortesã, já que o assunto não poderia ser exposto oralmente, dada a presença da neta da destinatária, uma moça inocente de apenas dezesseis anos. Nestas cartas conta que, recém chegado de Olinda, conhecera uma jovem e bela mulher, Lúcia, apaixonando-se à primeira vista por ela. Só mais tarde um amigo iria informá-lo de que Lúcia exercia a alta prostituição, sendo famosa por certas excentricidades, como vender todas as jóias que recebia de presente e jamais aceitar ser a amante exclusiva de alguém.
Já abalado com a terrível revelação, Paulo se deprime ainda mais ao presenciar o espetáculo que Lúcia promove na casa de Sá, um homem dado a orgias. Lúcia exibe-se nua sobre uma mesa, imitando as cenas libertinas dos quadros que decoram as paredes da casa. Paulo sente, ao mesmo tempo, raiva, piedade e paixão pela cortesã mas, ao sair para o jardim da casa, reencontra-a e obtém da mesma a promessa de nunca mais repetir a cena. Em seguida, os dois declaram-se apaixonados e terminam se amando sobre a relva.
A partir de então, Lúcia abandona a profissão e Paulo passa a sustentá-la em nível modesto. O relacionamento entre os dois , entretanto, continua muito complicado. O rapaz percebe-se fraco para enfrentar as pressões da sociedade e a jovem, por seu turno, não se considera merecedora de tal afeto, vendo objetivamente os terríveis impedimentos sociais colocados diante de ambos.
Após uma injustificada crise de ciúmes de Paulo, Lúcia enfim conta-lhe sua vida anterior, revelando que se prostituíra para ajudar sua família, de classe média, mas duramente empobrecida durante uma epidemia de febre amarela. Expulsa de casa pelo pai, trocara mais tarde seu verdadeiro nome, Maria da Glória, pelo de Lúcia, nome de uma amiga sua, morta de tuberculose. Depois de passar um ano na Europa, retornara ao Brasil, descobrindo que seus pais já tinham falecido. Internara, então, sua última parente, a irmã Ana, num colégio e seguira a profissão de cortesã.
Tempos depois, abandonando a prostituição, Lúcia busca Ana no internato e as irmãs passam a viver juntas. Paulo tenta novamente conquistar o amor da jovem, mas esta - embora correspondendo aos sentimentos do rapaz - recusa-se ao relacionamento, alegando que para destruir a sua condição de prostituta, precisava renunciar inclusive a seus sentimentos. Em seguida, pede a Paulo que se case com a irmã, porém este, desesperado, se nega a realizar o pedido. Subitamente, Lúcia desmaia, revelando-se a sua gravidez: estava esperando um filho do amante. O feto, contudo, morre no ventre materno. Dias depois, Lúcia faz Paulo jurar que seria um legítimo pai para Ana, e , em seguida, também morre.
Ao encerrar a correspondência dirigida à senhora G. M., Paulo informa-lhe que - conforme a promessa - servira de pai para Ana, que se casara.
(1) Alencar enquadrou como "perfis femininos" os romances Senhora, Lucíola e Diva
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