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CRUZ E SOUSA (1861 - 1898)
VIDA: João da Cruz e Souza nasceu em Desterro (hoje Florianópolis), filho de escravos libertos pelo marechal Guilherme de Souza, que adotou o menino negro e ofereceu-lhe a chance de estudar com os melhores professores de Santa Catarina. Foi seu mestre, inclusive, o sábio alemão Fritz Müller, correspondente de Darwin. Apesar da morte de seu protetor, conseguiu terminar o nível intermediário e, com pouco mais de dezesseis anos, tornou-se professor particular e militante da imprensa local. Aos vinte anos, seguiu com uma companhia teatral por todo o Brasil, na condição de "ponto". Durante estas viagens entregou-se à conferências abolicionistas. Em 1883, foi nomeado promotor público em Laguna, no sul da província, mas uma rebelião racista na pequena cidade, impediu-o de assumir o cargo, embora esta história seja contestada por algumas fontes.
Voltou a viajar e a cada regresso sentia a ampliação do preconceito de cor. Mudou-se então, definitivamente para o Rio de Janeiro. Lá se casaria com uma moça negra (Gavita) e conseguiria modesto emprego de arquivista na Central do Brasil, já no ano de 1893. Às inúmeras dificuldades financeiras somavam-se o desprezo dos intelectuais da época, que viam nele apenas um "negro pernóstico", o período de loucura mansa vivido pela esposa, durante seis meses, e a tuberculose que atacou toda a sua família: ele, a mulher e os quatro filhos. Numa carta ao amigo e protetor, Nestor Vítor, deixou registrado seu infortúnio:
"Há quinze dias tenho uma febre doida... Mas o pior, meu velho, é que estou numa indigência horrível, sem vintém para remédios, para leite, para nada! Minha mulher diz que sou um fantasma que anda pela casa!"
Este mesmo amigo providenciou uma viagem do poeta à região serrana de Minas Gerais, em busca de paliativo para a doença. Mal chegando lá, Cruz e Sousa piorou e faleceu na mais absoluta solidão. Três anos após - já tendo enterrado dois filhos - Gavina também desapareceria por causa da tuberculose. O terceiro filho morreria em seguida. O último, vitimado pela mesma moléstia, desapareceria em 1915. A família estava extinta numa terrível tragédia humana.
OBRAS PRINCIPAIS: Broquéis (1893) - Missal (1893) - Evocações (1899) - Faróis (1900) Últimos sonetos (1905)
A obra de Cruz e Sousa é a mais brasileira de um movimento que foi, entre nós, essencialmente europeu. Nela opera-se uma tentativa de síntese entre formas de expressão prestigiadas na Europa e o drama espiritual de um homem atormentado social e filosoficamente. O resultado passa, às vezes, por poemas obscuros e verborrágicos mas, na maioria dos casos, a densidade lírica e dramática do "Cisne Negro" atinge um nível só comparável ao dos grandes simbolistas franceses. O primeiro aspecto que percebemos em sua poética é a linguagem renovadora.
A linguagem metafórica e musical .
Ainda que sua formação tenha sido dentro do Parnasianismo - e desta escola ele guarde o cultivo da perfeição e o gosto pela métrica e pelo soneto - Cruz e Sousa foge da objetividade lingüística e dos lugares-comuns verbais de seus antecessores. No seus poemas, abundam substantivos comuns com iniciais maiúsculas e palavras raras. A linguagem denotativa quase desaparece na quantidade de símbolos, aliterações*, sinestesias*, esquisitas harmonias sonoras.
Ao contrário do texto parnasiano, o simbolista exige do leitor um esforço de decifração, de "tradução" da realidade sugerida para a realidade concreta. A todo momento, o poeta apela para a linguagem metafórica:
"O demônio sangrento da luxúria..."
"Punhais de frígidos sarcasmos..."
"Ó negra Monja triste, ó grande soberana." (A lua)
"As luas virgens dos teus seios brancos..."
"O chicote elétrico do vento..."
A musicalidade se dá através de aliterações. Sejam em v:
Vozes veladas, veludosas vozes,
volúpias dos violões, vozes veladas
vagam nos velhos vórtices* velozes
dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas*...
*Sinestesias: correspondência entre as diversas sensações, sons, olhares e cheiros.
*Aliterações: repetição de fonemas no início, meio ou fim das palavras.
*Vórtices: redemoinho, turbilhão.
*Vulcanizadas: ardentes, exaltadas.
Sejam em m:
Mudas epilepsias, mudas, mudas,
mudas epilepsias
Masturbações mentais, fundas, agudas
negras nevrostenias*.
Os exemplos são infinitos. Em s: "Surdos, soturnos, subterrâneos desesperos..." Em f: "Finos frascos facetados" E assim por diante, sempre a "música antes de qualquer coisa." Vale a pena lembrar também que o escritor não ignorava a sinestesia, utilizando-a com frequência: "vozes luminosas" - "aromas mornos e amargos" - "claridade viscosa" - "vermelhos clarinantes", etc.
Da mesma forma, quando necessitado de novas palavras com sonoridade originais, ele não tinha vergonha de inventá-las: "purpurejamento - suinice - tentaculizar - maternizado, etc.
Temas básicos
No entanto, a poética de Cruz e Sousa vai além destes procedimentos estilísticos inovadores. A junção da linguagem estranha com três ou quatro temas recorrentes e profundos é que lhe garantiu o lugar privilegiado em nossa literatura. A rigor, os seus assuntos são, basicamente:
-A obsessão pela cor branca
-O erotismo e sua sublimação
-O sofrimento da condição negra
-A espiritualização
A obsessão pela cor branca
Roger Bastide desvela nos primeiros livros de Cruz e Sousa uma imensa nostalgia de se tornar ariano. O poeta parece ocultar as suas origens numa louvação contínua da cor branca. O branco em seus diversos tons, o branco da neve, do luar, da neblina, da bruma, do cristal, do marfim, da espuma, da pérola, das luzes e dos brilhos. O crítico contou em Broquéis cento e sessenta e nove referências a este universo de brancuras. O primeiro poema do livro, Antífona*, já é indicativo do que virá depois:
Ó Formas alvas, brancas, Formas claras
De luares, de neves, de neblinas!
Ó formas alvas, fluidas, cristalinas,
Incensos dos turíbulos* das aras*
A lua, "fantasma de brancuras vaporosas", surge a todo instante:
Clâmides* frescas de brancuras frias
Finíssimas dalmáticas* de neve
Vestem as longas árvores sombrias,
Surgindo a Lua nebulosa e leve...
Névoas e névoas frígidas ondulam
Alagam lácteos e fulgentes* rios
Que na enluarada refração tremulam
D'entre fosforescências, calafrios...
*Nevrostenias: angústias, neuroses
*Antífona: versículo recitado antes ou depois da leitura de um salmo.
*Turíbulo: objeto para espargir incenso
*Ara: altar
*Clâmide: manto dos antigos gregos
*Dalmática: túnica
*Fulgente: brilhante
Também as mulheres que estimulam sexualmente o poeta, em sua maioria, são brancas:
Braços nervosos, brancas opulências
Brumais brancuras, fúlgidas brancuras
Alvuras castas, virginais alvuras,
Lactescências das raras lactescências.
Se existe uma vingança de Cruz e Souza contra o preconceito de cor, ela não se dá exatamente através de uma aproximação com seu mundo étnico. Ele buscou na aristocratização intelectual, no hermetismo*, na imitação do dernier cri parisiense e no desprezo pela vulgaridade, sua diferença em relação aos escritores brancos vinculados ao Parnasianismo. Como diz Roger Bastide, "criando uma arte de reticências e sutilezas", ele quis mostrar que o negro não era um materialista, preso à terra e ao prazer dos sentidos.
Daí também o platonismo* contínuo de sua poesia, na qual o universo concreto não passa de um reflexo sombrio de Essências e Idéias supraterrestres. Assim a poesia fica imaculada, limpa das impurezas da vida. E a obsessão pelo branco ganha uma dimensão filosófica, que poderia ser representada da seguinte maneira:
Mundo platônico > Mundo das Idéias e Formas Puras > Mundo alvo e nevoento
Este é o mundo ao que o poeta aspira: uma libertação, uma comunhão. Para tentar atingi-lo, destruirá a concepção parnasiana onde se formara: as coisas materiais se enevoarão, se diluirão. Os corpos femininos, no entanto, procurarão puxá-lo para a luxúria da vida terrena, atrapalhando a sua trajetória rumo às Essências.
*Hermetismo: fechamento, sentido obscuro.
*Platonismo: vem da filosofia de Platão, que afirma ser o nosso mundo uma cópia inferior de um mundo ideal.
Erotismo e sublimação
A mulheres surgem na obra de Cruz e Sousa como um símbolo de sensualidade. Mas ao contrário das figuras femininas de Olavo Bilac - descritas minuciosamente em sua graça corpórea, como esculturas belas e frias - as mulheres do catarinense aparecem, com freqüência, sob a forma de "cruéis e demoníacas serpentes" arrastando o poeta para convulsões, espasmos, anseios e desejos obscuros.
Estamos longe daqueles retratos parnasianos, emoldurados por um erotismo convencional. Cruz e Sousa prefere mergulhar nas sensações despertadas pelas "carnes tépidas":
Carnais, sejam carnais tantos desejos,
Carnais, sejam carnais tantos anseios,
Palpitações e frêmitos* e enleios*,
Das harpas da emoção tantos arpejos*...
Estes "sentimentos carnais" exasperam o poeta em "febres intensas, ânsias mortais, angústias palpitantes" impelindo-o a necessidade de sublimar as "flamejantes atrações do gozo". É necessário transportar estes espasmos e desejos para o reino sideral e assim desmaterializá-los:
Para as Estrelas de cristais gelados
as ânsias e os desejos vão subindo,
galgando azuis e siderais noivados
de nuvens brancas a amplidão vestindo.
*Sublimação: Processo inconsciente de desviar a energia da libido para outras esferas ou atividades.
*Frêmitos: vibrações, arrepios.
*Enleios: laços, atrações.
*Arpejos: execução rápida e sucessiva de notas musicais.
O sofrimento da condição negra
Em Faróis e Evocações (poemas confessionais em prosa), Cruz e Sousa produzirá textos dolorosos e noturnos. A escuridão da noite - sempre associada à idéia de morte - substituirá o culto do branco e do erotismo. Estes dois livros correspondem à época da loucura de sua mulher, das maiores dificuldades financeiras, do preconceito de cor e do descaso dos intelectuais por sua obra. Como que lhe traduzindo a agonia interior, o estilo torna-se mais obscuro e tortuoso do que normalmente. O seu sentimento dominante é o de opressão, como se percebe em O emparedado:
Se caminhares para a direita, baterás e esbarrarás ansioso, aflito, numa parede horrendamente incomensurável de Egoísmos e Preconceitos! Se caminhares para a esquerda, outra parede, de Ciências e Críticas, mais alta do que a primeira. Se caminhares para a frente, ainda nova parede, feita de Despeito e Impotências, tremenda, de granito, broncamente se elevará do alto! Se caminhares, enfim, para trás, há ainda uma derradeira parede, fechando tudo, fechando tudo - horrível! - parede de Imbecilidade e Ignorância, te deixará n'um frio espasmo de terror absoluto. (...) E as estranhas paredes hão de subir - longas, negras, terríficas! Hão de subir, subir, subir mudas, silenciosas, até as Estrelas, deixando-te para sempre perdidamente alucinado e emparedado dentro do teu Sonho...
O sofrimento da condição negra não se transforma em protesto racial, e sim em isolamento, solidão, aristocratização amarga. O Simbolismo é para ele uma forma de revolta contra a sociedade e contra suas próprias origens africanas, pelas quais sente, ao mesmo tempo, orgulho e pesar. O "emparedado" vinga-se das "paredes" que o asfixiam com a sua criatividade poética. É uma revolta estética, raramente quebrada pela denúncia social, a não ser em textos como Litania dos pobres:
Os miseráveis, os rotos
São as flores dos esgotos
São espectros implacáveis
Os rotos, os miseráveis
São prantos negros de furnas
Caladas, mudas, soturnas (...)
Faróis à noite apagados
Por ventos desesperados(...)
Bandeiras rotas, sem nome,
Das barricadas da fome.
Bandeiras estraçalhadas
Das sangrentas barricadas.
A espiritualização
A tuberculose veio culminar o processo trágico de Cruz e Sousa e sua família. Os tormentos atingem agora a plenitude, e a morte paira sobre tudo com sua túnica negra. Em Últimos sonetos, a linguagem parece se despir dos excessos anteriores e chega à perfeição. O poeta está diante do grande abismo e procura decifrar seu formidável mistério. Já não se trata apenas da angústia de um homem proscrito por causa de sua raça. O sofrimento, de fato, é inerente à condição humana. E, diante do fim, o artista experimentará sensações diversas, desde o desejo de dissolução na "Noite redentora" até a expectativa de ressurreição em outra vida
Seu processo de espiritualização é difusamente católico: dá a impressão de que acredita na sobrevivência dos mortos, que estes serão restituídos a sua "verdadeira pátria", isto é, a pátria das almas e das essências platônicas, onde reina o "Transcendente", o "Absoluto" e onde, por fim, encontrará a paz:
Sorrindo a céus que vão se desvendando,
A mundos que vão se multiplicando,
A portas de ouro que vão se abrindo!
A religiosidade filosófica permite-lhe - apesar de todos os dramas de sua vida - declarar-se um vencedor, como verificamos no seu derradeiro poema, o antológico Sorriso interior:
O ser que é ser e que jamais vacila
Nas guerras imortais entra sem susto,
Leva consigo este brasão augusto
Do grande amor, da grande fé tranqüila.
Os abismos carnais da triste argila
Ele os vence sem ânsia e sem custo...
Fica sereno, num sorriso justo,
Enquanto tudo em derredor oscila.
Ondas interiores de grandeza
Dão-lhe esta glória em frente à Natureza,
Esse esplendor, todo esse largo eflúvio*.
O ser que é ser transforma tudo em flores...
E para ironizar as próprias dores
Canta por entre as águas do Dilúvio!
Mesmo que, em sua fé platônica-cristã, o poeta cante a esperança de uma outra vida, momentos de desespero e tristeza continuam aflorando em sua obra final. O soneto Vida obscura, que alguns julgam dedicado a sua própria esposa, e que outros vêem como um auto-retrato do artista, é a mais conhecida de suas criações:
"Ninguém sentiu o teu espasmo obscuro,
ó ser humilde entre os humildes seres.
Embriagado, tonto dos prazeres,
o mundo para ti foi negro e duro.
Atravessaste no silêncio escuro
a vida presa a trágicos deveres
e chegaste ao saber de altos saberes,
tornando-te mais simples e mais puro.
Ninguém te viu o sentimento inquieto,
magoado, oculto e aterrador, secreto,
que o coração te apunhalou no mundo.
Mas eu que sempre te segui os passos
sei que cruz infernal prendeu-te os braços
e o teu suspiro como foi profundo!
Manuel Bandeira sintetizou bem a poderosa poética de Cruz e Sousa:
Dos sofrimentos físicos e morais de sua vida, do seu penoso esforço de ascensão na escala social, do seu sonho místico de uma arte que seria uma 'eucarística espiritualização', do fundo indômito de seu ser de 'emparedado' dentro da raça desprezada, ele tirou os acentos patéticos que lhe garantem a perpetuidade de sua obra na literatura brasileira. Não há gritos mais dilacerantes, suspiros mais profundos do que os seus.
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