|
Vida
Nasceu em Angra do Reis, filho de uma família de grandes proprietários. Teve uma infância bastante reclusa, devido ao isolamento social de seus pais. No começo da década de 1870, os Pompéia se mudaram para a Corte e o menino vai estudar no mais famoso e caro colégio da época, o Colégio Abílio, onde permaneceu por cinco anos e do qual se vingaria dez anos depois. Concluiu seus estudos no Colégio D. Pedro II e, mais tarde, bacharelou-se pela Faculdade de Direito do Recife. Abolicionista e republicano exaltado, é uma espécie de intelectual de esquerda da época. Ocupou vários cargos públicos, inclusive a direção da Biblioteca Nacional. Seu temperamento exaltado despertou ódios e inimizades. Chegou a marcar um duelo com Olavo Bilac, que acabou não se realizando. Esta sensibilidade doentia e não resolvida impeliu-o ao suicídio, num dia de Natal. Contava então trinta e dois anos de idade.
Obra Principal: O Ateneu (1888)
Ainda que tenha escrito poemas (Canções sem metro), uma novela (Uma tragédia no Amazonas), e deixado obras inéditas, Raul Pompéia permanece como autor de um romance essencial de nossa literatura: O Ateneu, que traz um enganoso subtítulo: Crônica de saudades.
Desenho de Pompéia mostrando Ema, a esposa de Aristarco. Assim como no romance, ela aqui aparece com traços difusamente sensuais. Fortemente pessoal, - mas não a ponto de ser considerado uma autobiografia - o texto parte das experiências do autor num sistema de internato.. Marcado de forma intensa por estes anos, que são para ele de sofrimento e solidão, trata de recriá-los artisticamente, valendo-se para isso de um personagem chamado Sérgio.
Projeção do escritor, Sérgio evoca - em primeira pessoa - o início de sua adolescência passada no internato. A narrativa é construída a partir da perspectiva de Sérgio já amadurecido. E o leitor tem a visão de um sujeito adulto que lembra os acontecimentos. Não a visão que o menino teria ao ingressar no internato. Assim, o romance é a memória adulta de uma experiência juvenil. Atente-se para o primeiro parágrafo do texto:
Vais encontrar o mundo, disse-me meu pai, à porta do Ateneu. 'Coragem para a luta.' Bastante experimentei depois a verdade deste aviso, que me despia, num gesto, das ilusões de criança educada exoticamente na estufa de carinho que é o regime do amor doméstico.
Vê-se aí que o narrador, no presente (a idade madura), analisa os dados do passado. Suas lembranças confundem-se com os julgamentos que emitirá sobre a vida no educandário. Não há, pois, uma única história encadeada, um enredo propriamente dito, e sim um acúmulo de fatos, percepções, situações e impressões, que servem para indicar a psicologia e a estrutura social do mundo do internato. O próprio tempo objetivo da ação dissolve-se na densa subjetividade do narrador.
A inexistência de uma intriga, à maneira romântica ou realista, favorece os desígnios de Raul Pompéia - ele não quer contar a vida no Ateneu, ele quer desmascará-la e interpretá-la. Os episódios servem como desvelamentos sucessivos da corrupção e da miséria moral que imperam no colégio. O texto denota sempre uma atmosfera de crise. Sobretudo, a crise das ilusões de Sérgio:
Onde metera a máquina dos meus ideais naquele mundo de brutalidade que me intimidava com os obscuros detalhes e as perspectivas informes, escapando à investigação de minha inexperiência?
A Corrupção
Sensível ao extremo, Sérgio percebe a queda das aparências: "Cada rosto amável daquela infância era a máscara de uma falsidade, o prospecto de uma traição." "Solitário e solidário" - conforme análise do crítico Astrogildo Pereira -, procura ligações autênticas com os colegas. Mas o que encontra é a brutalidade, a vontade de poder, a exploração e o homossexualismo. Todas as camaradagens são efêmeras e dissimuladas:
Um cáfila! (dizia Rebelo) Não imagina, meu caro Sérgio. Conte como uma desgraça ter de viver com esta gente, (...) Aí vão as carinhas sonsas, generosa mocidade... Uns perversos. Têm mais pecados na consciência que um confessor no ouvido; uma mentira em cada dente, um vício em cada polegada de pele. Fiem-se neles. São servis, traidores, brutais, adulões. Vão juntos. Pensa-se que são amigos... Sócios de bandalheiras! Cheiram à corrupção, empestam de longe.
Há no colégio uma explícita divisão entre fortes e fracos. O relacionamento entre os colegas reduplica os valores do universo social: opressores e oprimidos. A saída dos frágeis é adquirir a "proteção" de um dos rapazes mais fortes, porém o preço é alto:
Isto é uma multidão; é preciso força de cotovelos para romper. (...) Os gênios fazem aqui dois sexos, como se fosse uma escola mista. Os rapazes tímidos, ingênuos, sem sangue, são brandamente impelidos para o sexo da fraqueza; são dominados, festejados, pervertidos como meninas ao desamparo. (...) Faça-se homem, meu amigo! Comece por não admitir protetores.
Dificilmente alguém se isenta do homossexualismo sutil que assalta as salas de aulas, os corredores e os dormitórios do Ateneu. Exceção feita a Rebelo, todas as amizades de Sérgio são ambíguas. Ele próprio - por medo - parece dispor-se a certo tipo de relacionamento:
Depois que sacudi fora a tranca dos ideais ingênuos, sentia-me vazio de ânimo; nunca percebi tanto a espiritualidade imponderável da alma: o vácuo habitava-me dentro. Premia-me a força das coisas; senti-me acovardado. Perdeu-se a lição viril de Rebelo; prescindir de protetores. Eu desejei um protetor, alguém que me valesse, naquele meio hostil e desconhecido, e um valimento direto mais forte do que palavras. (...) Pouco a pouco me ia invadindo a efeminação mórbida das escolas. (...) E, como se a alma das crianças, à maneira do físico, esperasse realmente pelos dias para caracterizar em definitivo a conformação sexual do indivíduo, sentia-me possuído de certa necessidade preguiçosa de amparo, volúpia de fraqueza...
Os vínculos de Sérgio com Sanches e Bento Alves estão assinalados por esta terrível atração que, às vezes, os dominados têm pelos dominadores. O quadro onde se desenha a figura de Bento Alves é bem nítido: o seu poder sedutor reside na força física:
Consideravam-no principalmente pela nomeada de hercúleo. Os fortes constituem uma fidalguia de privilégios no internato. (...)
Estimei-o femininamente, porque era grande, forte, bravo; porque me podia valer; porque me respeitava, quase tímido, como se não tivesse ânimo de ser amigo. Para me fitar espera que eu tirasse dele os meus olhos. (...) Aquela timidez, em vez de alertar, enternecia-me...
Veja-se também a dúbia afeição do narrador por Egbert:
Vizinhos ao dormitório, eu, deitado, esperava que ele dormisse para vê-lo dormir e acordava mais cedo para vê-lo acordar. Tudo que nos pertencia era comum. Eu por mim positivamente o adorava e o julgava perfeito. Era elegante, destro, trabalhador, generoso. Eu admirava-o, desde o coração até a cor da pele e à correção das formas
Aristarco, "monstro moral".
A síntese da dissolução de todos os valores é Aristarco, o diretor do colégio. Para Sérgio, ele encarna a perversidade do sistema. E o ódio, que o narrador-adulto guarda do internato, converge para sua figura caricatural e grotesca. Sem qualquer vislumbre humanista, dirige a escola como se ela fosse uma casa de comércio:
Aristarco todo era um anúncio. Os gestos, calmos, soberanos, eram de um rei - o autocrata*excelso dos silabários*; a pausa hierárquica do andar deixava sentir o esforço, a cada passo, que ele fazia para levar adiante, de empurrão, o progresso do ensino público.(...) A própria estatura, na imobilidade do gesto, na mudez do vulto, a simples estatura dizia ele: aqui está um grande homem...(...)
Em suma, um personagem que, ao primeiro exame, produzia-nos a impressão de um enfermo, desta enfermidade atroz e estranha: a obsessão da própria estátua. Como tardasse a estátua, Aristarco satisfazia-se interinamente com a afluência dos estudantes ricos para o seu instituto. De fato, os educandos do Ateneu significavam a fina flor da mocidade brasileira.
Aristarco na visão crítica de Pompéia. O sucesso de Aristarco origina-se dessa aparência de educador. Mantém-se graças ao pedantismo, ao brilho e à violência de sua retórica. O discurso encobre e mistifica a realidade, a linguagem serve ao poder:
"Um trabalho insano! [dizia Aristarco.] Moderar, animar, corrigir esta massa de caracteres, onde começa a ferver o fermento das inclinações, encontrar e encaminhar a natureza na época dos violentos ímpetos; amordaçar excessivos ardores; retemperar o ânimo dos que se dão por vencidos precocemente; espreitar, adivinhar os temperamentos; prevenir a depravação dos inocentes; espreitar os sítios obscuros; fiscalizar as amizades; desconfiar das hipocrisias; ser amoroso, ser violento, ser firme; triunfar dos sentimentos de compaixão para ser correto; proceder com segurança, para depois duvidar; punir para pedir perdão depois... (...) Ah, meus amigos, concluiu ofegante, não é o espírito que me custa, não é o estudo dos rapazes a minha preocupação... É o caráter! Não é a preguiça o inimigo, é a imoralidade!' Aristarco tinha para esta palavra uma entonação especial, comprida e terrível, que nunca mais esquece quem a ouviu de seus lábios. 'A imoralidade'.
E recuava tragicamente, crispando as mãos. 'Ah! mas eu sou tremendo quando esta desgraça nos escandaliza. Não! Estejam tranqüilos os pais! No Ateneu, a imoralidade não existe. Velo pela candura das crianças, como se fossem não digo meus filhos: minhas próprias filhas!
O adolescente Sérgio descobre a falsidade da linguagem de Aristarco. O adulto Sérgio - inventariando o passado no colégio - leva a hipocrisia das falas de Aristarco até os limites da sordidez. E o diretor nos é apresentado em toda a sua hipocrisia e vileza. Ele ama, sobretudo, a si mesmo, ou melhor, ele ama a imagem que fez de si. Os bajuladores, os que reforçam a imagem do "grande educador", são recompensados. Um professor chega a gritar: "Acima de Aristarco - Deus! Deus tão-somente; abaixo de Deus - Aristarco."
Na figura, caricaturada ao extremo por Sérgio, existe algo de megalomania. O seu narcisismo, o sonho com a eternidade de um busto, indica um comportamento anormal. Mas essa anormalidade (segundo o narrador) é institucionalizada pelo outros professores que acabam inaugurando festivamente o busto de Aristarco, perante ele mesmo.
* Autocrata: mandatário com poderes absolutos.
* Silabários: o conjunto que compõe a escrita silábica.
O Mundo Degradado
Mário de Andrade reparou que ninguém parece escapar à corrupção que domina o colégio: professores, colegas, funcionários, etc. Mesmo Ema, esposa de Aristarco, dada pelo narrador como uma criatura generosa, é envolvida num clima de difuso erotismo em seu contato com Sérgio. Um adolescente, Franco, por sua fragilidade e fracasso nos estudos, torna-se o bode expiatório do colégio. Sérgio aproxima-se dele e descobre que inclusive o fraco está contaminado pela perversidade. Até mesmo o personagem mais simpático do livro, o Dr. Cláudio - famoso por suas conferências, nas quais sempre manifestava um pensamento revolucionário - revela uma cínica argumentação a respeito do internato:
Pompéia acentua pelo traço caricatural a figura grotesca do diretor do colégio.
É uma organização imperfeita, aprendizagem de corrupção, ocasião de contato com indivíduos de toda origem? O mestre é a tirania, a injustiça, o terror? O merecimento não tem cotação, (...) aprova-se a espionagem, a adulação, a humilhação, campeia a intriga, (...) abundam as seduções perversas, triunfam as audácias dos nulos? Tanto melhor: é a escola da sociedade.
Ensaiados no microcosmo do internato, não há mais surpresas no grande mundo lá fora, onde se vão sofrer todas as convivências, respirar todos os ambientes; onde a razão da maior força é a dialética geral, e nos envolvem as evoluções de tudo o que rasteja e tudo que morde, porque a perfídia terra-terra é um dos processos mais eficazes da vulgaridade vencedora. (...)
E não se diga que é um viveiro de maus germes, seminário de nefasto de maus princípios, que hão de arborescer depois. Não é o internato que faz a sociedade; o internato a reflete. A corrupção que ali viceja, vem de fora.
Também Sérgio se corrompe: "Tornei-me um animalzinho ruim." Sofre o condicionamento do meio, torna-se vítima do sistema. O que não o impede - conforme observação de Alfredo Bosi - de se converter em promotor: seu texto tem o alcance de uma poderosa acusação contra o internato. E na exata medida em que o internato representa a sociedade, sua destruição através de um incêndio - desnecessário para a coerência do romance - assume uma dimensão simbólica. O fogo que consome o Ateneu consome também a organização social que o fizera possível.
A Linguagem
A linguagem de Raul Pompéia filia-se à chamada "prosa artística", desenvolvida na França pelos famosos irmãos Goncourt. Trabalhada de maneira intensa pelo autor, com grande força plástica e sonora, passa longe da noção realista de simplicidade e despojamento, encontrando em comparações, metáforas e na sofisticação vocabular a sua expressividade. O tom requintado dá-lhe, às vezes, certo artificialismo.
Não é inadmissível supor também que este estilo - velado e difícil pelo refinamento verbal - corresponda à ambigüidade do escritor, no sentido de simultaneamente desvelar e ocultar as realidades psicológicas e as vivências que ele experimentou no colégio
Trata-se, de qualquer maneira, de um estilo fortemente literário e, portanto, bastante afastado do tom coloquial que predomina no romance a partir da revolução modernista. Em vista disso, há uma natural dificuldade por parte dos alunos para efetivar a leitura de O Ateneu. Porém, um bom dicionário e um esforço de concentração permitem aos mais curiosos o acesso a esta obra-prima da narrativa brasileira do século XIX.
A Classificação
A ânsia classificatória dos historiadores literários brasileiros não se reduz a uma mera questão didática. É que nossos autores precisam ser catalogados segundo modelos europeus. E quando um artista nacional foge, internacionalmente ou não, dos padrões das grandes metrópoles culturais, arma-se a confusão. Manuel Antonio de Almeida, Machado de Assis e Raul Pompéia produzem obras cuja originalidade impede o seu enquadramento em categorias européias rígidas. Isso confunde muitos de nossos estudiosos literários.
O Ateneu, por exemplo, já foi incluído na estética naturalista. A idéia da corrupção desencadeada pelo meio percorre o romance. Mas a diluição da objetividade narrativa num angustiante subjetivismo afasta o texto dos princípios daquele movimento.
Vários críticos consideram o relato como realista, usando os mesmos critérios para a classificação da obra de Machado de Assis, isto é, tratar-se-ia de um realismo particular, pessoal, intransferível. Este conceito, como já vimos, possui tamanha abrangência que nenhum livro escrito no Ocidente deixaria de ser realista.
Mais recentemente, alguns críticos buscaram uma similitude entre a obra de Raul Pompéia e valores do Impressionismo europeu, numa engenhosa aproximação.
Um romance impressionista?
Com certeza O Ateneu supera a formulação tradicional do realismo, pois apresenta um narrador cheio de emotividade. O Sérgio-adulto gostaria de rememorar com isenção as experiências de menino, porém à medida em que submerge no passado, este começa a voltar com tamanha vibração dolorosa que a objetividade dilui-se. É como se o adulto fosse tragado pelas impressões do menino que teimam em persistir na sua alma. Assim, O Ateneu se converte na pura expressão das emoções de Sérgio: sofrimento do menino e desejo de vingança do adulto. Essa densidade das impressões impede que o romance seja objetivo ou neutro.
Teria ele então um caráter impressionista?
Ora, o Impressionismo é um estilo que tem o seu apogeu durante as últimas décadas do século XIX, principalmente no campo das artes plásticas. Seu princípio básico é o de que todo e qualquer conhecimento racional e objetivo da realidade é precedido de uma sensação. Ou seja, de uma impressão sobre essa realidade. E se até ali a arte concentrara-se na observação detalhada das múltiplas facetas do real, agora, ao inverso, a arte deve procurar reproduzir as impressões do sujeito perante determinados objetos. Delimitando historicamente o Impressionismo, diz Arnold Hauser:
Rua Montorgueil embandeirada, de Monet, traduz uma explosão de cores e luzes, naquela que é considerada, por alguns críticos, a obra impressionista de maior esplendor. É uma arte citadina, por excelência, não só porque pinta a cidade, mas porque também vê o mundo com olhos de citadino, e reage ante as impressões exteriores com os nervos superexcitados do homem técnico moderno; é um estilo citadino porque descobre a versatilidade, o ritmo nervoso, as impressões súbitas, agudas, mas sempre efêmeras da vida na cidade. (...) Constitui o ponto culminante da tendência dinâmica e da dissolução da estática imagem medieval do mundo.
Ainda que alguma aproximação possa ser feita entre o estilo impressionista da pintura e o da literatura, e ainda que o relato de Raul Pompéia guarde um tom sensorial e emotivo, este rótulo parece tão inconveniente quanto os anteriores.
Não seria o caso de abandonarmos ciranda tão infernal de etiquetas e classificações, e conceber O Ateneu apenas como um romance extremamente singular em nossa literatura?
|
|
|