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Literatura Brasilera

OUTROS REALISTAS

 
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O cearense Manuel de Oliveira Paiva (l861-l892) é um desses escritores que só a posteridade reconhece, até porque sua obra principal, Dona Guidinha do Poço vem à luz apenas em 1952, apresentando um tipo de realismo rural que antecipa os grandes textos sobre o mundo sertanejo produzidos pelos romancistas de 1930.
Outro cearense de obra injustamente relegada a um segundo plano é Domingos Olímpio (1850-1906). Em seu único romance publicado, Luzia-Homem (1903), também se vincula a este realismo sertanejo, - que alguns chamam de regionalismo - apresentando com tintas carregadas o flagelo da seca em sua região, ao mesmo tempo que enfoca a força física e moral da sertaneja Luzia, criatura intermediária entre dois sexos, o corpo quase másculo numa alma feminina e que termina assassinada por um soldado quando se dispunha a amar ternamente outro homem.

ALUÍSIO AZEVEDO (1857-1913)
Vida
Nasceu em São Luís do Maranhão, filho de uma mulher cheia de ousadia que abandonara o marido, grosseiro comerciante português, para ir viver em regime de concubinato com o vice-cônsul de Portugal, com quem teve cinco filhos. Estimulado pela atmosfera intelectual e artística que imperava em sua casa, Aluísio revelou precocemente pendor pelo desenho e pela pintura. Fez os primeiros estudos na capital maranhense, mas aos dezenove anos, sohando com um curso de Belas-Artes, na Europa, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde seu irmão mais velho, o comediógrafo e jornalista Artur de Azevedo fazia grande sucesso. Lá trabalhou como caricaturista em vários periódicos. A morte do pai, dois anos depois, obrigou-o a retornar para São Luís, onde cuidaria dos negócios paternos. Em 1879, estreou na literatura com um medíocre folhetim, Uma lágrima de mulher. Dedicou-se também ao jornalismo, editando O pensador, um jornal de combate ao clero e ao atraso mental de cidade.

Autocaricatura de Aluísio Azevedo sendo apresentado aos leitores do Rio de Janeiro, para onde se mudara após o escândalo causado pela publicação de O mulato. A culminância de sua rebeldia ocorreu em 1881, quando publicou o romance O mulato. A denúncia da corrupção do clero e do preconceito racial existentes na burguesia maranhense irritou os leitores da província, impelindo Aluísio Azevedo, então com vinte e quatro anos, a retornar ao Rio. Passou a viver exclusivamente da literatura, lançando folhetins românticos de baixa categoria, entremeados por duas narrativas naturalistas. Em 1895, com quase quarenta anos, ingressou na carreira diplomática. Como cônsul, percorreu uma série de países estrangeiros. A partir de então, surpreendentemente, abandonou a produção literária. Os motivos de sua renúncia ficaram ignorados. Morreu em Buenos Aires, onde servia e vivia conjugalmente com uma senhora argentina e dois filhos desta.
Obras Principais
Naturalistas - O mulato (1881); Casa de pensão (1884); O cortiço (1890)
Folhetins - Girândola de amores (1882); O homem (1894); O livro de uma sogra (1895).

Aluísio Azevedo é o primeiro caso de escritor no país a decidir-se pela literatura como forma de sobrevivência. Para tanto, precisará capitular às exigências do mercado que pede melodramas baratos e de fácil digestão. Sem vergonha aparente, satisfaz o gosto do público e lhe fornece o esperado.

Simultaneamente, acaba encontrando na estética naturalista, - seja através da obra de Zola, seja através dos romances de Eça de Queirós - os princípios que lhe permitirão o desenvolvimento de uma obra adulta. O trabalho como caricaturista e a vocação para a pintura tinham intensificado o sentido plástico de seu texto. "Primeiro desenho os meus romances. Depois, redijo-os." - confessará ele mais tarde.
O gosto naturalista pela descrição minuciosa, pelos painéis abrangentes e pelos costumes coletivos adequavam-se às tintas carregadas de sua linguagem. Assim como a ênfase na denúncia social e na patologia correspondiam à sua visão contestadora e também pessimista da realidade.

Nas suas três obras básicas, ele revolverá temas proibidos (ou escondidos), a exemplo do racismo, da opressão dos trabalhadores livres, da sexualidade tropical, das aberrações morais e biológicas de ricos e pobres, etc.

O Mulato
O primeiro texto importante do escritor é ainda uma mistura mal resolvida de Romantismo e Naturalismo. O jovem bacharel Raimundo, mulato de olhos azuis, desembarca em São Luís, em busca de suas origens familiares e dos misteriosos recursos que sustentaram os seus longos estudos em Portugal. Apesar de sua pele clara, ele desperta o preconceito racial dos provincianos e, ao mesmo tempo, a paixão histérica de Ana Rosa, filha do rico comerciante português Manuel Pedro, que vem a ser o tio e o tutor desconhecido do rapaz.
Mesmo não sabendo que Ana é sua prima, Raimundo evita-a completamente. Mais tarde, (e de maneira inexplicável) ele acabará por pedi-la em casamento, porém Manuel lhe negará a mão da filha. A negativa corresponde à percepção do racismo por parte do mulato. Como resposta, Raimundo e Ana resolvem enfrentar o mundo e se amam fisicamente, disso resultando a gravidez da moça.
Os lances melodramáticos, mesclados com candentes denúncias sociais, acentuam-se com a descoberta de vários crimes: o assassinato do pai do mulato, também ele um rico comerciante português, a loucura de sua mãe negra, induzida por bárbaras torturas escravagistas, etc. Por fim, quando o leitor já está confuso com tantas peripécias, revela-se o responsável pelo terror: é o cônego Diogo, padre devasso, sanguinário e racista.

Ao perceber que Raimundo encontrara o fio da meada,o cônego convence o caixeirinho Dias, ex-namorado de Ana Rosa, a matá-lo. O mulato é liquidado e a jovem, ao ver o amante morto, tem uma crise histérica e aborta. Em seguida, a narrativa projeta-se para seis anos depois: o assassinato fica impune, ninguém lembra mais de Raimundo. Dias e Ana Rosa estão bem casados, prósperos e com três filhos.
O ataque do escritor ao preconceito racial, ao reacionarismo do clero e a estreiteza do universo provinciano, mais o registro fisiológico das paixões, sacodem São Luís e fazem os leitores esquecer o que no romance havia de disparatado folhetim romântico. Contudo, esta indeterminação entre Romantismo e Naturalismo começaria a desaparecer no relato subseqüente.

Casa de Pensão
Em Casa de pensão as tiradas melodramáticas e sensacionalistas do folhetim são reduzidas. Predomina o esforço de registro objetivo da realidade. O argumento centra-se na figura do jovem Amâncio - um maranhense muito rico - que vem estudar Medicina no Rio de Janeiro. Sua fortuna desperta o interesse de um pretenso amigo, o estudante João Coqueiro. Este administra com sua mulher, uma francesa bem mais velha, a casa de cômodos para onde irão atrair o provinciano. João Coqueiro tem uma irmã de vinte e três anos, a doce e bela Amélia, que é jogada nos braços do novo hóspede para que o mesmo se apaixone por ela e a peça em casamento.
O tom naturalista do relato vem da fraqueza de caráter e de vontade de Amâncio, atribuída tanto a sua educação maranhense (pai autoritário e mãe protetora), quanto ao "sangue doentio" de sua ama de leite, uma escrava. O estudante não tem ânimo para controlar o instinto libidinoso e sente-se atraído por várias mulheres com quem flerta e tenta obter favores sexuais. Aceita de bom grado a companhia de Amélia, sobretudo depois de sofrer intensamente com febres da "bexiga negra" (varíola), da qual escapará sem marcas. A partir desse fato, viverão juntos, como se legítimos esposos.
Mesmo que os outros hóspedes tenham partido da casa de pensão, depois da peste de Amâncio, João Coqueiro sente-se feliz por imaginar que o seu futuro estará garantido pelo casamento da irmã com o jovem provinciano. Amâncio, contudo, tem outros planos. Abandona a amante e o próprio quarto na pensão, sob o pretexto de uma viagem à casa materna.
Exasperado e valendo-se de falsos testemunhos, João Coqueiro denuncia-o como estuprador da irmã. Amâncio é preso e levado a julgamento. A opinião pública fica toda a seu lado até ele ser absolvido num processo escandaloso. Amélia e o irmão recebem o desprezo popular, tornando-se vítimas de insultos e ironias.
A João Coqueiro não resta outra saída senão vingar a honra perdida da família: procura Amâncio num hotel e o assassina com seis tiros. A mesma opinião pública que o tinha como um canalha, agora o verá como um autêntico defensor da moral familiar, já prenunciando a sua absolvição. O romance termina com a mãe de Amâncio, recém-chegada do Ceará, descobrindo por acaso que o filho fora assassinado.
A força dramática de certas cenas e a descrição franca dos impulsos sexuais ( para os padrões do século XIX ) ampliam o prestígio e a aura escandalosa que já revestiam a figura o escritor Na verdade, ele está se preparando para produzir o grande texto de sua curta carreira literária.

O Cortiço
Um pouco antes de publicar O cortiço, em 1890, o ficcionista maranhense anunciara o seu propósito de elaborar um conjunto de cinco romances sobre a realidade brasileira, abrangendo épocas e tipos distintos. Seguia o modelo de Zola, com seu polêmico afresco da civilização francesa contemporânea. Aqui também a estrutura social aos poucos se alterava, exigindo do romancista experimental um registro sociológico dessas transformações.

Com o crescimento urbano da antiga capital federal, milhares de pessoas passaram a viver em cortiços no centro da cidade. A liberação para atividades produtivas de um expressivo capital, até então envolvido com o tráfico negreiro, ensejara um rápido desenvolvimento urbano no Rio de Janeiro. Depois de 1860, centenas de fábricas instalaram-se na capital federal (chapéus, tecidos, bebidas, etc.); surgiram bancos, companhias de comércio e navegação, empresas de transporte de construção, de gás, ampliaram-se os serviços em geral. O aumento dos negócios aumentara também os contingentes populacionais que se deslocavam para a cidade. Agora irão núcleos de moradia, denominados cortiços, onde se aglomeravam, sem conforto e sem higiene, milhares de pessoas. Sensibilizado por tal espetáculo, Aluísio Azevedo resolve traduzi-lo para a literatura:
Noventa e cinco casinhas comportou a imensa estalagem.
As casinhas eram alugadas por mês e as tinas por dia: tudo pago adiantado. (...)

Graças à abundância de água que lá havia, como em nenhuma outra parte, e graças ao muito espaço de que se dispunha no cortiço para estender a roupa, a concorrência às tinas não se fez esperar; acudiram lavadeiras de todos os pontos da cidade, entre elas algumas vindas de bem longe. E, mal vagava uma das casinhas, ou um quarto, um canto onde coubesse um colchão, surgia uma nuvem de pretendentes a disputá-los.

Um romance sobre as classes populares
O aparecimento dos segmentos populares urbanos como atores principais do texto é uma das grandes novidades de O cortiço. Operários, cavouqueiros(trabalhadores em pedreiras), malandros, soldados, os primeiros imigrantes, comerciários, lavadeiras, prostitutas, gente de vida ordinária e gente de atividade incerta compõem a galeria dominante dos personagens. Estes procedem de todas as raças: são brancos, negros, mulatos, cafuzos, numa multiplicidade étnica e social até então desconhecida no romance brasileiro.
Pela primeira vez também registra-se a luta pela sobrevivência econômica, a qual todos se entregam vorazmente; o áspero trabalho cotidiano, seja na pedreira, nas tinas de roupas, na venda e na feira; e, por fim, as duras condições de existência na habitação coletiva.
Ao privilegiar as classes subalternas, o escritor não se deixa levar pela idealização populista, isto é, por aquela ótica que transforma os pobres em modelos insuperáveis de qualidade humana. Apesar da denúncia da exploração econômica e da estrutura perversa que impera no cortiço, seus moradores são retratados brutalmente. De acordo com os princípios naturalistas, sempre terminam arrastados pelo determinismo do meio e dos instintos:
E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa, começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer o mundo, uma coisa viva, uma geração que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, e multiplicar-se como larvas no esterco.
O cenário é descrito em toda a sua sujeira, podridão e promiscuidade. O principal personagem do romance é o próprio cortiço, que se estende até a pedreira, no fundo de sua área. É ele quem determina o comportamento dos indivíduos que se moldam, agem e vivem em função das características do ambiente. Ora, se essa habitação coletiva é sórdida, os moradores também o serão. Aluísio Azevedo elabora uma espécie de painel, procurando abranger quase todos os habitantes, para demonstrar a adaptação do grupo ao meio. A rigor, não há um protagonista principal, capaz de concentrar a ação do romance. Há, isso sim, um imenso número de figurantes, que se relacionam uns com os outros e, antes de tudo, com o cenário.

O escritor não se sente à vontade na descrição de personagens fortemente individualizados e complexos. Sua força - fora a pintura do meio - reside na fixação de cenas coletivas. Que poder, vitalidade e movimento para exprimir uma massa humana! Observe-se este amanhecer no cortiço:

Daí a pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas. Uns, após outros, lavavam a cara, incomodamente, debaixo do fio de água que escorria da altura de uns cinco palmos. O chão inundava-se. As mulheres precisavam já prender as saias entre as coxas para não as molhar; via-se-lhes a tostada nudez dos braços e do pescoço, que elas despiam suspendendo o cabelo todo para o alto do casco. Os homens, esses não se preocupavam em não molhar o pêlo, ao contrário, metiam a cabeça bem debaixo da água e esfregavam com força as ventas e as barbas, fossando e fungando contra as palmas da mão. As portas das latrinas não descansavam, era um abrir e fechar de cada instante, um entrar e sair sem tréguas. Não se demoravam lá dentro e vinham ainda amarrando as calças ou as saias; as crianças não se davam ao trabalho de lá ir, despachavam-se ali mesmo, na capinzal dos fundos, por detrás da estalagem ou no recanto das hortas.

O meio como "abrasileiramento"
A corrupção do cenário - que se projeta na alma humana - não é atribuída exclusivamente à miséria e à exploração econômica. Ela tem a ver com uma idéia de natureza tropical, onde o sol, a luz e o calor dissolvem o equilíbrio, amolecem a vontade, fomentam a indisciplina e promovem transgressões morais e sexuais de toda a ordem. Assim, o erotismo e a turbulência dos instintos são transformados em símbolo de uma forma brasileira de ser e existir.
Há uma página espetacular no livro, quando Jerônimo, - íntegro trabalhador português - sente a atração viscosa e irresistível da música popular e da dança de Rita Baiana:
Moradores em frente a um cortiço Nada mais que os primeiros acordes da música crioula para que o sangue de toda aquela gente despertasse logo, como se alguém lhe fustigasse o corpo com urtigas brabas. E seguiram-se outras notas, e outras, cada vez mais ardentes e mais delirantes. Já não eram dos instrumentos que soavam, eram lúbricos gemidos e suspiros soltos em torrente, a correrem serpenteando, como cobras numa floresta incendiada; eram ais convulsos, chorados em frenesis de amor; música feita de beijos e soluços gostosos; carícia de fera, carícia de doer, fazendo estalar de gozo.
Jerônimo alheou-se de sua guitarra(...) todo atento para aquela música estranha, que vinha dentro dele continuar uma revolução começada desde a primeira vez que lhe bateu em cheio no rosto, como uma bofetada de desafio, a luz deste sol orgulhoso e selvagem.(...)
O chorado arrastava-os a todos, despoticamente, desesperando aos que não sabiam dançar. Mas ninguém como a Rita; só ela, só aquele demônio, tinha o mágico segredo daqueles movimentos de cobra amaldiçoada.(...)
E Jerônimo via e escutava, sentindo ir-se-lhe toda a alma pelos olhos enamorados.
Naquela mulata estava o grande mistério, a síntese das impressões que ele recebeu chegando aqui: ela era a luz ardente do meio-dia; ela era o calor vermelho das sestas da fazenda; era o aroma quente dos trevos e das baunilhas, que o atordoara nas matas brasileiras; era o veneno e era o açúcar gostoso;(...) ela era a cobra verde e traiçoeira, a lagarta viscosa, a muriçoca doida, que esvoaçava havia muito tempo em torno do corpo dele, assanhando-lhe os desejos,(...) picando-lhe as artérias, para lhe cuspir dentro do sangue uma centelha daquele amor setentrional, uma nota daquela música feita de gemidos de prazer, uma larva daquela nuvem de cantáridas* que zumbiam em torno de Rita Baiana e espalhavam-se pelo ar numa fosforescência afrodisíaca.
Jerônimo comprova a tese do determinismo do meio brasileiro: o seu caráter sério, a dedicação que vota ao trabalho e a austeridade de seus costumes desagregam-se na sensualidade indolente, no gosto pelo café e pela cachaça, no vício do fumo, e na vadiagem como alternativa existencial. Ao ceder à atração da terra, ele perde a chance de dominá-la e explorá-la, ao contrário do que faz seu compatriota João Romão.
Rita Baiana é o estopim dessas mudanças. Tradução do trópico, ela enlouquece o português, puxando-o para uma vida desregrada e cheia de prazeres corpóreos. A primeira vez em que a mulata aparece dançando, já pressentimos que o cavouqueiro não escapará de seu fascínio:
Ela saltou em meio da roda, com os braços na cintura, rebolando as ilhargas e bamboleando a cabeça, ora para a esquerda, ora para a direita, como numa sofreguidão de gozo carnal, num requebro luxurioso que a punha ofegante; já correndo de barriga empinada; já recuando de braços estendidos, a tremer toda, como se fosse afundando num prazer grosso que nem azeite.(...) Depois, como se voltasse à vida, soltava um gemido prolongado, estalando os dedos no ar envergando as pernas, descendo, subindo, sem nunca parar com os quadris.
A capitulação de Jerônimo diante desse símbolo feminino do trópico dá-se em função do esmagamento da vontade individual pelo ambiente:
E Jerônimo, pelo seu lado, cedendo às imposições mesológicas*, enfarava-se da esposa, e queria a mulata, porque a mulata era o prazer, era a volúpia, era o fruto dourado e acre destes sertões americanos, onde a alma de Jerônimo aprendeu lascívias de macaco e onde seu corpo porejou o cheiro sensual dos bodes.
* Cantáridas: Insetos que triturados e servem de base para bebidas afrodisíacas.
* Mesológicas: referente ao meio.

O triunfo sobre o meio
O português João Romão é o único vencedor do romance. Empregado de uma venda, recebe-a de presente depois que o dono enriquecido volta para Portugal. Trabalhando como um cão danado; abusando do trabalho servil e do corpo de uma escrava fugida, Bertoleza, que ele torna sua amante; roubando nos pesos e medidas do armazém; valendo-se da renda imobiliária arrancada dos trabalhadores que começam a alugar os primeiros quartos de seu cortiço; poupando tudo no extremo da mais completa sovinice; ele conseguirá amealhar uma fortuna considerável, nos moldes mesquinhos da acumulação primitiva de capital:
Desde que a febre de possuir se apoderou dele totalmente, todos os seus atos, todos, fosse o mais simples, visavam um interesse pecuniário. Só tinha uma preocupação: aumentar os bens.(...) Aquilo já não era ambição, era uma moléstia nervosa, uma loucura, um desespero de acumular, de reduzir tudo a moeda.

Como diz um crítico, João Romão usa as forças do meio, mas não se submete a elas. Num primeiro momento, ele sequer se distingue da escrava Bertoleza, seja nos costumes diários, seja no trabalho duro e feroz, parecendo que vai sucumbir ao mundo promíscuo do cortiço que ele mesmo criou e que explora com mãos de ferro.
Entretanto, ele é diferente de Jerônimo, o português vencido pela realidade brasileira. João Romão foge de qualquer integração com a sensualidade e a desordem do ambiente, sob pena de perder a chance da escalada econômica.. Explorar o natural da terra é o seu único objetivo. Para isso agirá cada vez com maior ferocidade e ausência de compaixão.

Ao chegar no topo, descobre simultaneamente o vazio de seu triunfo. No sobrado, ao lado do cortiço, outro comerciante português, Miranda, é agraciado com o título de barão. O desprezo mútuo que um alimentara pelo outro, durante todo o relato, converte-se agora em admiração. Miranda respeita a riqueza de João Romão, e este deslumbra-se com os ares aristocráticos do vizinho. Casar-se com a filha do barão, Zulmira, é para o dono do cortiço dar um sentido a sua existência ordinária e avarenta, penetrar no campo dos ganhadores, alçar-se definitivamente sobre o passado nauseante.

No entanto, há um fio que o prende ao passado: Bertoleza. Ela fora vital para sua ascensão, agora não passa de um trambolho desprezível. Sem qualquer piedade, o português chama o filho do antigo dono da escrava fugida para restituí-la à senzala. Num momento fortíssimo do livro, Bertoleza enlouquece de desespero frente a perversidade do amante e suicida-se com o mesmo facão com que limpava escamas e tripas de peixes.

A vitória de João Romão torna-se assim tenebrosa e mostra o pessimismo de Aluísio Azevedo. O português que sobrepuja o meio é um explorador repugnante. Já os que são derrotados pelo ambiente, - brasileiros ou europeus abrasileirados - não passam de seres destituídos de vontade e compostura, merecendo de certa forma a opressão que os vitimiza.

O determinismo dos instintos
As teorias fatalistas se complementam com o peso decisivo dos instintos nas ações dos personagens. Os instintos são sempre bestiais e degradantes, intensificando a potência avassaladora do cenário.
A personagem Pombinha sofre o impacto dessa "fermentação sangüínea". Filha de uma senhora distinta que as injunções da sorte levaram para o cortiço, ela atravessa a adolescência sem menstruar e por isso torna-se o símbolo da pureza em meio ao lodo moral. Tem um noivo de boa família e também ajuda os demais moradores, escrevendo-lhe cartas, fazendo o rol para as lavadeiras, etc. A violência e a imundície da habitação coletiva não parecem afetá-la, até que chega a menstruação, saudada alegremente por sua mãe:
Depois abraçou-se às pernas da filha e, no arrebatamento de sua comoção, beijou-lhe repetidas vezes a barriga e parecia querer beijar também aquele sangue abençoado, que lhe abria os horizontes da vida, que lhes garantia o futuro; aquele sangue bom, que descia do céu, como a chuva benfazeja sobre uma pobre terra esterilizada pela seca.
A partir desse momento, Pombinha desenvolve sua "alma enfermiça e aleijada", vivendo uma rápida experiência homossexual com a prostituta Léonie e depois casando-se com um rapaz que não ama mais. Trairá várias vezes o marido, mas só encontrará o seu destino quando for viver definitivamente com Léonie e deixar se levar sem remorsos para a prostituição:
Pombinha, só com três meses de cama franca, fizera-se tão perfeita no ofício como a outra; a sua infeliz inteligência, nascida e criada no modesto lodo da estlagem, medrou logo admiravelmente na lama forte dos vícios de largo fôlego; fez maravilhas na arte; parecia adivinhar todos os segredos daquela vida.
Assim, se alguém escapa da corrupção do meio, naufraga a seguir na corrupção de sua própria animalidade.

A animalização dos seres humanos
A redução biológica do Naturalismo configura todo o ser humano como um animal. É o substrato comum que unifica os homens. Como diz Antonio Candido, "há uma tendência a conceber a vida como a soma das atividades do sexo e da nutrição, sem outras esferas significantes."
A pressão rasteira da animalidade manifesta-se no dia-a-dia dos moradores do cortiço. Estes parecem viver tão somente para atender suas necessidades mais primárias: beber, comer, dormir, fazer sexo, brigar e divertir-se como bichos. Os que aspiram a algo mais, são implacavelmente pervertidos a exemplo de Pombinha e Jerônimo.
Por isso, a todo momento no texto, nos deparamos com palavras que indicam, direta ou indiretamente, uma relação - sempre depreciativa - dos personagens com o reino animal:
"Revoluteava em corcovos de égua";
"Prazer animal de existir";
"As mulheres despejavam crianças com uma regularidade de gado procriador";
"O mugido lúgubre daquela pobre criatura abandonada";
"Um verminar constante de formigueiro assanhado";
"Olhos luxuriosos de macaca";
"Gozou-a loucamente com a verdadeira satisfação de animal no cio";
"Aquele bafo quente e sensual que o embebedava com seu fartum de bestas no coito".

O narrador parece experimentar uma sensação de náusea diante do universo que revela, atenuando o aspecto de denúncia social, e reforçando a grosseria e a vulgaridade das relações humanas. Racionalmente, condena a miséria, o racismo e a exploração econômica. Afetivamente tem repugnância por aqueles pobres, sujos e malvados que acaba de incorporar à literatura brasileira.
Uma síntese final de O CORTIÇO
A concepção ideológica da existência - que chega ao extremo de considerar o próprio cortiço um organismo vivo, sujeito às leis evolutivas;
A predominância do coletivo sobre o particular;
O fatalismo que condena os indivíduos a se tornarem o reflexo do cenário onde vivem;
A identificação da indolência, da bagunça e da sensualidade como uma forma tropical-brasileira de ser;
A ótica nauseada do narrador, que transforma todas as criaturas humanas em animais;
Algumas tiradas racistas, de acordo com os princípios "cientificistas" da época;
A celebração de uma extraordinária força vital, de uma selvagem vibração dos instintos, e de uma fervilhante alegria de existir e de sobreviver em condições tão adversas.

Aluísio quando a literatura deixa de interessá-lo, já na maturidade. Sem medo de temas e palavras proibidas, Aluísio Azevedo - o artista plástico de vocação irrealizada - pinta um quadro definitivo, (simultaneamente luminoso e opressivo) do miserável cortiço. Um quadro tão forte que jamais o esquecemos:

(...) o verdadeiro tipo de estalagem fluminense, a legítima, a legendária; aquela em que há um samba e um rolo por noite; aquela em que se matam homens sem polícia descobrir os assassinos; viveiros de larvas sensuais em que irmãos dormem misturados com irmãs na mesma cama; paraíso de vermes; brejo de lodo quente e fumegante, donde brota a vida brutalmente, como de uma podridão.

 

 
 
 
 
   
 
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